quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Não há nenhum frenezim. A família não está; nem tão pouco nos vamos cruzar hoje. Não há crianças a correr, já não há crianças entre nós. A casa cheira a farinha, a ovos, a erva doce, a mel... um perfume que preparei toda a manhã, com o coração nas mãos e as mãos na massa.
Aqueço o forno a 180º e deito lá para dentro todos os pensamentos. Se ebolir, talvez anule um por um.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Petição natalícia

Procura-se poeta, que goste de bossa nova, praia no Inverno e vegetais.

Hoje quis aventurar-me num plano de fuga, mas o gasóleo era pouco e estava a chover.

domingo, 19 de dezembro de 2010

o coração dela era feito de um finíssimo cristal pronto a quebrar cada vez que o tempo mudasse.

e quando se lembrava do dia em que vinho suportou o amor maior que teve na vida, afagava o rosto na neve e gelava as lágrimas junto à terra.

dizem que o pequeno estilhaço de cristal do coração que ainda tem espalhado pelo corpo, se transforma todas as noites na Primavera que viveu.

durante o dia, jura pelo sagrado, que o coração está intacto e que não há lembrança que o destrua.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

É intelectual falar-se da morte dos grandes vultos da cultura, mas na escola sempre me chamaram de "intelectual". Quando falava sobre literatura, o mundo do meu tamanho questionava o que significava tal palavrão. Um dia dei uma pequena palestra a falar sobre livros, tinha 10 anos. Mostrei que os livros podem ser os nossos melhores amigos, que podemos conhecer o mundo através deles e sorrir, mesmo quando a vida não nos deixa sorrir. Emprestei os livros, como quem empresta vidas...e nunca me devolveram os poemas da Sophia, nem tão pouco a Alice Vieira que levaram para baixo da cama.
Era a intelectual, mesmo sem usar os óculos de massa que hoje suporto na cara. Era a intelectual que via o Acontece com o Carlos Pinto Coelho na emissão da televisão pública portuguesa. Reclamava com o meu pai, porque não suportava ter que ver aquilo. Nunca ninguém ia falar com uma miúda que via o Acontece todas as noites. Era o cúmulo do intelectualismo de alguém de 10 anos. Ouvia o Acontece, sem querer, enquanto rogava pragas à televisão.
Mais tarde tudo fez mais sentido, o "assim acontece" do Carlos Pinto Coelho, começou a alimentar os meus trabalhos para a escola e via resultados nessa visualização.
Ontem, enquanto lia a noticia da morte de Carlos Pinto Coelho, saúdei-o à noite. Trouxe-nos a Rua Sésamo, que me ensinou as letras, o Acontece, que me ensinou a ler com o coração e queria-nos trazer uma nova televisão...mais cultural e menos popular.

E assim acontece... para sempre.
Cada vez mais gosto menos de festa e mais do silêncio e das folhas em branco.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

verdade #2


Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa de minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
e as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar

Adília Lopes
C.
ou o egoísmo de te ter

*

Pousa a tua mão trémula
sobre os meus caracóis,
Agarra o terço,
conta a conta,
e quando encontrares
a linha da vida na palma da mão,
estica-a.
Preciso que o bater do teu coração,
se sobreponha à tempestade impetuosa
da procura do meu nenúfar afundado
no meu coração por encontrar.

verdade #1

"Quando nos põe numa vida, não sabemos ter outra"

Dulce Maria Cardoso

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Intimidade

[excerto da Primeira Carta II]
Venceste» -, digo. Logo sou eu que te venço e tu perdes, pois confiado na vitória esqueces a vigilância sobre mim, que te examino.
Friamente?
Que outra maneira tenho de examinar as coisas, os outros: com toda a minha paixão? Aquela alimentada pelo simples prazer ou dor que me dá senti-la. - Assim te procuro, te uso, te escrevo; porém as palavras não são elos, nem pontes, nem laços a desatar na solidão das salas.
Em salas nos queriam às três, atentas, a bordarmos os dias com muitos silêncios de hábito, muito meigas falas e atitudes. Mas tanto faz aqui ou em Beja a clausura, que a ela nos negamos, nos vamos de manso ou de arremesso súbito rasgando as vestes e montantando a vida como se machos fôramos - dizem.
De imediato então nos querem tomar pela cintura, em alvos lençóis de cama se necessário, e filhos. Que mãos nos galgam as carnes a fim de retomarem a posse, impondo-nos matriz de dono, porque dano causamos na recusa e menstruo será o estigma que eles tomam por feminina causa de nos exigirem a vontade e silenciarem o gesto com que nos despimos ou negamos para nosso próprio proveito e palavra dada a nós mesmas.
Direito conquistámos, também, de escolher vingança, já que vingança se exerce no amor e amor nos é dado de uso: usar o amor com as ancas, as pernas longas que sabem, cumprem bem o exercício que se espera delas.


Mª Isabel Barreno
Mª Teresa Horta
Mª Velho da Costa

in Novas Cartas Portuguesas